quarta-feira, 9 de julho de 2008

REGRAS PARA DISCERNIMENTO DOS ESPÍRITOS

 


Por Santo Inácio de Loyola

1ª regra

Às pessoas que vão de pecado mortal em pecado mortal, costuma normalmente o inimigo propor-lhes prazeres aparentes, fazendo com que imaginem deleites e prazeres sensuais para que mais se conservem e cresçam nos seus vícios e pecados.

Com tais pessoas o bom espírito usa de um método oposto: punge-lhes e remorde-lhes a consciência pela sindérese (1) da razão.

2ª regra

Nas pessoas que se vão purificando intensamente dos seus pecados e caminham no serviço de Deus nosso Senhor de bem a melhor, o bom e o mau espírito operam em sentido inverso ao da regra precedente. Porque neste caso é próprio do mau espírito causar tristeza e remorsos de consciência, levantar obstáculos e perturbá-las com falsas razões para as deter no seu progresso.

E é próprio do bom espírito dar-lhes coragem, forças, consolações e lágrimas, inspirações e paz, facilitando-lhes o caminho e desembaraçando-o de todos os obstáculos, para as fazer avançar na prática do bem.

3ª regra

A consolação espiritual. Chamo consolação quando na alma se produz alguma moção interior, pela qual ela vem a se inflamar no amor do seu Criador e Senhor e, conseqüentemente, quando a nenhuma cousa criada sobre a face da terra, pode amar em si, senão no Criador de todas elas.

Do mesmo modo, quando derrama lágrimas que a movem ao amor do seu Senhor, seja pela dor dos seus pecados ou por causa da Paixão de Cristo nosso Senhor ou por outras coisas diretamente ordenadas ao serviço e louvor dEle.

Finalmente, chamo consolação a todo aumento de esperança, fé e caridade e a toda alegria interior que eleva e atrai a alma para as coisas celestiais e para sua salvação, tranqüilizando-a e pacificando-a em seu Criador e Senhor. (2)

4ª regra

A desolação espiritual. Chamo desolação todo o contrário da terceira regra: como escuridão da alma, perturbação, incitação a coisas baixas e terrenas, inquietação proveniente de várias agitações e tentações que levam à falta de fé, de esperança e de amor; achando-se a alma toda preguiçosa, tíbia, triste e como se separada do seu Criador e Senhor.

Porque, assim como a consolação é contrária à desolação, assim os pensamentos provenientes da consolação são opostos aos provenientes da desolação.

5ª regra

No tempo da desolação não se deve fazer mudança alguma, mas permanecer firme e constante nos propósitos e determinações em que se estava no dia anterior a esta desolação, ou nas resoluções tomadas antes, no tempo da consolação.

Porque, assim como na consolação é o bom espírito que nos guia e aconselha mais eficazmente, assim na desolação nos procura conduzir o mau espírito, sob cuja inspiração é impossível achar o caminho que nos leve a acertar.

6ª regra

Uma vez que na desolação não devemos mudar os primeiros propósitos, muito aproveita reagir intensamente contra a mesma desolação, por exemplo, insistindo mais na oração, na meditação, em examinar-se muito e em aplicar-se nalgum modo conveniente de fazer penitência.

7ª regra

O que está em desolação considere como o Senhor, para o provar, o deixou entregue às suas potências naturais, a fim de resistir aos diversos impulsos e tentações do inimigo.

Porque pode resistir-lhes com o auxílio divino, que nunca lhe falta, embora não o sinta distintamente, por lhe ter tirado o Senhor o seu muito fervor, o grande amor (3) e  graça intensa, restando-lhe contudo a graça suficiente para a salvação eterna.

8ª regra

O que está em desolação esforce-se por se manter na paciência, virtude oposta às aflições que lhe sobrevêm. E pense que bem depressa será consolado, empregando contra tal desolação as diligências explicadas na sexta regra.

9ª regra

Três são as causas principais da desolação:

Primeiramente, a nossa tibieza, preguiça e negligência nos exercícios de piedade afastam de nós, por culpa própria, a consolação espiritual.

Em segundo lugar, para mostrar-nos quanto valemos e até que ponto somos capazes de avançar no serviço e louvor de Deus, sem tanta recompensa de consolações e maiores graças.

Em terceiro lugar, para nos ensinar e fazer conhecer em verdade, sentindo-o interiormente, que não depende de nós conseguir ou conservar uma grande devoção, um intenso amor, lágrimas, nem qualquer outra consolação espiritual, mas que tudo isso é um dom e uma graça de Deus nosso Senhor. E também para que não façamos ninho em casa alheia, permitindo que o nosso espírito se exalte com qualquer movimento de orgulho ou vanglória, atribuindo-nos a nós os sentimentos da devoção ou os outros efeitos da consolação espiritual.

10ª regra

Quem está em consolação preveja como se há de portar no tempo de desolação, que depois virá, tomando novas forças para esse tempo.

11ª regra

Quem está em consolação procure humilhar-se e abater-se tanto quanto possível, lembrando-se de quão pouco é capaz no tempo da desolação, quando privado dessa graça ou consolação.

Pelo contrário, quem está desolado lembre-se que muito pode com a graça que lhe basta para resistir a todos os seus inimigos, procurando forças em seu Criador e Senhor.(4)

12ª regra

O inimigo procede como uma mulher, sendo fraco quando lhe resistimos, e forte no caso contrário.

Pois é próprio da mulher, quando disputa com algum homem, perder a coragem e pôr-se em fuga, quando este lhe resiste francamente. Pelo contrário, se o homem começa a temer e a recuar, crescem sem medida a cólera, a vingança e a ferocidade dela.

Do mesmo modo, é próprio do inimigo enfraquecer-se e perder o ânimo, retirando suas tentações, quando a pessoa que se exercita nas coisas espirituais enfrenta sem medo as suas tentações, fazendo diametralmente o oposto.

Ao invés, se a pessoa que se exercita começa a ter medo e a perder o ânimo ao sofrer tentações, não há animal tão feroz sobre a face da terra como o inimigo da natureza humana, na prossecução de sua perversa intenção com tão grande malícia.

13ª regra

Também age como um sedutor, em querer ficar oculto e não ser descoberto.

Pois o homem corrupto, quando solicita por palavras para um fim mau a filha de um pai honrado ou a mulher de um bom marido, quer que suas palavras e insinuações fiquem em segredo. Ao contrário muito se descontenta, quando a filha revela ao pai ou a mulher ao marido suas palavras sedutoras e intenção depravada, pois facilmente conclui que não poderá levar a termo o empreendimento começado.

Da mesma forma, quando o inimigo da natureza humana apresenta suas astúcias e insinuações à alma justa, quer e deseja que sejam recebidas e guardadas em segredo. Mas, quando a pessoa tentada as descobre a seu bom confessor ou a outra pessoa espiritual, que conheça seus enganos e malícias, isso lhe causa grande pesar, porque conclui que não poderá realizar o mal que começara, uma vez que foram descobertos seus enganos evidentes.

14ª regra

Procede também como um caudilho, para vencer e roubar o que deseja.

Pois assim como um capitão ou comandante de uma tropa, acampando e examinando as forças ou disposição de um castelo, ataca-o pelo lado mais fraco, da mesma maneira, o inimigo da natureza humana, rondando à volta de nós, observa de todos os lados nossas virtudes teologais, cardeais e morais. Onde nos encontra mais fracos e mais necessitados quanto à nossa salvação eterna, por ali nos combate e procura tomar-nos.


(1) Faculdade natural de julgar com retidão.

(2) A consolação é um dom gratuito de Deus, mas nós o experimentamos através de seus efeitos.

(3) O amor de Deus a nós permanece imenso, mas somos nós que não sentimos mais o fervor o amor e a graça.

(4) Nem a consolação, nem a desolação são estados definitivos aos quais nos possamos abandonar. Devemos sempre a respeito deles conservar um recuo que permita julgá-los e recolocá-los na trama de nossa experiência espiritual.


Fonte: Livro "Exercícios Espirituais", Santo Inácio de Loyola, p. 169-176.